Ele me deu o beijo da morte quando eu pensava em vida. Sua língua áspera, quente e molhada percorreu todos os caminhos do meu medo.
Eu solucei e não quis que um sonho como aquele tivesse fim. Ele me disse 'sim', quando eu esperava um frio 'talvez'. Talvez alguma confissão de crime, um estelionato qualquer. Ele apenas me disse que me tiraria do cume da montanha da minha solidão. Quebraria a rotina dos dias que passavam regulares como o sol, como o percurso dos astros. 'Alone in a hill', ele contou da música dos 'Beatles' e era como se estivesse olhando para mim. Eu não sei se concordava ou lutava para parecer mais forte do que realmente sou. Realmente sou o forte o suficiente para querer contestar um elogio ou uma análise psicológica tão profunda. 'They don't like him'... era como ouvir ninguém me ama, ninguém me quer. Como ele poderia saber da minha vida tanto assim? Eu não sei se algum dom profético ou alguma tática de persuasão eficaz.
Ele enfiava suas coxas entre as minhas pernas simulando uma penetração gigantesca, sem, no entanto, ser dolorosa. Seus pêlos contra os meus faziam renascer em mim um sentimento ancestral, primitivo e cruel. Cruel ao ponto de eu nao querer nada além daquele contato. Quem era aquele homem estranho e eloquente, nu e belo ao meu lado?
O beijo da morte começou quando ele falou do veneno em seus lábios. Da poção mágica que era a sua saliva. Mas eu pensava que o feitiço começava em suas palavras. O beijo da morte existia... sim, ele existia. Seus lábios percorriam mais que o convencional percurso do prazer, iam dos pontos mais inesperados e ao mesmo tempo mais sedentos e esquecidos. Os lábios do beijo da morte percorriam meu corpo e falavam de cores. Minha cabeça era o próprio centro do furacão, sem base certa. Ele me falava da virada do século e o que poderia acontecer quando o ano dois mil chegasse. Para mim, já havia chegado o terceiro milênio e ele nem sequer se dava conta do acontecido. O que ele queria de mim eu nao poderia saber, é certo que nunca soube. São tantos os perigos da paixão, da loucura então... não digo o que eu poderia esperar dele. Prazer é como efeito analgésico. Não queria ser tão previsível assim.
Agora suas mãos descobriram américas no meu corpo. Umas américas ainda inexploradas e sedentas por civilização e progresso. Uns indígenas assim tão inocentes, contando os dias em noites de lua. Eu não saberia dizer a emoção que senti quando ele descobriu meus joelhos. A Pinta, a Niña e a Santa Maria... uma verdadeira invasão em território ainda virgem. Ele recitava trechos do diário de 'Anais Nin', enquanto beijava e mordia a parte posterior do meu joelho. Além de tudo, um homem sensível. Mas o beijo da morte rondava a nossa cama. Seus dentes alvos me prometiam um desfecho maravilhoso. O que mais eu poderia esperar? Talvez o amor... mas o amor corre o risco de ficar chato e não queríamos o convencional. Isto ele me dizia enquanto explorava os dedos do meu pé esquerdo. Aquele homem maravilhoso tinha, além de tudo, a curiosa mania de citações cinematográficas.
Termômetros, se existissem naquele momento, teriam rompido seus limites e espalhado milhares de esferas metálicas e fugídias, se é que é este o efeito do mercúrio dos termômetros. Por isto, não quero lembrar de tantas coisas que ainda hoje me são muito caras. Não pretendo macular o paraíso com interesses pouco nobres. Quero voltar para o primeiro momento do encontro. A maneira imperiosa de o destino se firmar em nossas vidas. A mesa do bar, o olhar, seus gestos pouco usuais, seu sorriso. Tudo o que poderia acabar em nada e se transformou no motivo de toda uma vida. O beijo da morte que aquele homem me deu, qualquer um poderia tentar, sem ao menos chegar perto do seu talento.
Agora, quando tento pensar que tudo não passou de um sonho, não sei porque motivo não consigo. Fico à espera dele, na soleira de uma casa de subúrbio, cominhando pela orla da praia, encostado no piloti de um prédio do Grajaú, ele não vem... o beijo da morte era mais eficiente do que eu pensava. Ele escapou de mim com o temor do vampiro diante da cruz. O vampiro de Copacabana, o lobisomem de Parati, a mula sem cabeça de Cascadura.
Tudo o que tento recriar hoje são memórias, pois a morte já chegou há muito.
Sem ele, que neste momento deve estar beijando de morte outros homens que nunca saberei quem são. Cobrando cachês que não valem o seu verdadeiro valor. Ele que é o dono do beijo, o senhor da vida e da morte.
sábado, 17 de janeiro de 2009
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E então é assim que se vive, esperando o novo beijo da morte, para quem sabe nos retomar a vida. Enquanto isso não acontece, ficamos mortos na memória de um beijo que nunca, talvez, voltará.
ResponderExcluirSALVE RENATO RUSSO, OU O AMANTE DELE, OU SEJA LÁ QUEM FÔR.
"Sem ele, que neste momento deve estar beijando de morte outros homens que nunca saberei quem são. Cobrando cachês que não valem o seu verdadeiro valor."
ResponderExcluir"Minha cabeça era o próprio centro do furacão, sem base certa."
ResponderExcluirLindo.
Uau, obrigado por reproduzir meu conto... tao antigo, tao esquecido mesmo por mim.
ResponderExcluirAbraco,
Sergio Barcellos
Ele é um poeta ou um filósofo?
ResponderExcluirAdorei.